Por Alan R. Oliveira
26 de Junho de 2025
Onde você esteve no dia 5 de abril de 2024? Ou mesmo no dia 20 do mês passado? Muito provavelmente você não se lembrará. Mas o data center que armazena sua geolocalização com base em alguma aplicação em seu smartphone se lembra.
Suas redes sociais dizem muito sobre sua aparência, através das fotos que você renova semanalmente, ou até diariamente. Os lugares que você gosta de visitar, o conteúdo que consome, suas preferências políticas e religiosas. Se você gosta ou não do governo, de algum órgão nacional ou supranacional. Se é a favor ou contra determinadas medicações. Os data centers sabem como é sua voz, através de chamadas telefônicas, áudios enviados diariamente e do “microfone espião” que está sempre escutando o que você dirá, pronto para reagir a comandos como “Ok, Google” ou “Toque uma música, Alexa”.
Os data centers de bancos, em conjunto com os governos, possuem todos os seus dados pessoais: quanto dinheiro você movimenta, como movimenta, com o que gasta, onde gasta, para quem faz doações, de onde recebe doações. Outros sistemas reúnem suas dívidas, infrações, contas pagas com atraso e complicações judiciais.
Esse “grande sistema” (que pode ser a união dos dados de todas as grandes empresas), contém o conjunto de dados coletados sobre você ao longo da vida, em algum sentido, sabe mais sobre você do que você mesmo. Todos esses dados podem ser cruzados para criar uma representação digital sua: o “Clone Digital”.
Esse clone é usado para prever desde se você será capaz de pagar um empréstimo, até o tipo de camisa que compraria, o vídeo que mais o atrai, as notícias que prende sua atenção e até se você poderia ou não cometer um crime. Tudo com base em estatísticas frias armazenadas a partir da sua vida compartilhada, direta ou indiretamente, por meio da internet.
Não é mais o gerente do banco quem conversa com você para aprovar ou negar um empréstimo. É uma inteligência artificial, que analisa automaticamente os dados do seu CPF: renda, dívidas, gastos. Ela decide seu futuro com base no seu rastro digital.
No início, pode parecer inofensivo — limite de cartão de crédito ou anúncios personalizados com base no seu comportamento online. Mas o abismo se aproxima quando o julgamento moral ou legal também passa a ser conduzido por algoritmos.
Imagine ser internado em um hospital psiquiátrico por postar frases consideradas “psicologicamente preocupantes”. Ou ser levado a depor por curtir um vídeo de um opositor do governo. Ou ainda ser rotulado como preconceituoso por assistir a um show de humor negro.
Poderíamos também ser barrados de entrar em um país por termos parentes com problemas judiciais, por termos um “perfil digital” rejeitado por algoritmos daquele Estado. E tudo isso, sem que um ser humano tenha de fato analisado nossa história.
Se estatisticamente um ex-criminoso, morador de certa região ou até pessoas com certos traços físicos têm maior propensão a cometer algum crime, esse indivíduo nunca mais será tratado como uma pessoa normal, mas sim como um criminoso em potencial — sempre sob vigilância e suspeita.
E se usassem ou cruzassem características físicas ou comportamentais e certos tipos de predisposições não bem vistas pelo sistema vigente para perseguir, espionar ou prender pessoas?
Semelhante ao filme “Minority Report” (2002) onde tem a companhia chamada “pré crime” que prende as pessoas antes mesmo de cometer os crimes, reduzindo drasticamente o número de crimes. As pessoas são tratadas como se já tivessem cometido o crime, com base nessas “previsões do futuro”, baseado em dados de uma inteligência orgânico-artificial. Tudo isso apoiado pelas redes de comunicação por intensa propaganda emotiva, com pessoas que já perderam alguém em algum tipo de crime.
O problema da morte da privacidade é que pode-se usar de fatos para criar uma estória baseada em uma narrativa qualquer.
Imagine que você pesquisou no Google por “depressão”, assistiu a alguns vídeos sobre ansiedade no YouTube e passou dias sem postar nas redes sociais.
Agora, suponha que um sistema de análise de dados — público ou privado — cruze essas informações com seu histórico de localização (ficou muito tempo em casa), suas mensagens (mais curtas e frias) e conclua: "perfil emocional instável, com risco psicológico elevado."
Essa conclusão pode parecer lógica, mas não considera o contexto: talvez você só estivesse estudando o tema para um trabalho acadêmico. Talvez tenha ficado em casa porque estava gripado. Talvez apenas decidiu se afastar das redes por descanso mental.
Mesmo com fatos reais, como buscas, vídeos e padrões de comportamento, uma narrativa falsa pode ser construída e usada contra você. Você pode ser: Rejeitado para um cargo sensível; Impedido de comprar uma arma ou fazer um empréstimo; Internado “preventivamente” com base em interpretações. Quando a privacidade desaparece, qualquer verdade isolada pode ser manipulada para contar uma mentira convincente, especialmente se for útil a quem controla o sistema de interpretação.
Com a justificativa em combater crimes, terrorismo e coisas maléficas desse tipo, pode-se usar medidas extremas, que acabam criando problemas tão ruins ou até maiores, como o caso do famoso “PRISM”.
PRISM é um programa de vigilância global da NSA que foi revelado por Edward Snowden em 7 de junho de 2013 para o jornal The Guardian. Snowden vazou documentos que comprovam que a NSA espionava os cidadãos americanos e não americanos (incluindo uma presidente brasileira - Dilma) em parceria com gigantes da tecnologia como Microsoft, Google, Facebook, Yahoo!, Apple, AOL, Paltalk e Skype.
De acordo com esse vazamento o PRISM coleta os dados que são analisados posteriormente através de outros programas:
MYSTIC: Intercepta e grava 100% das chamadas telefônicas de países estrangeiros, permitindo ouvir conversas até um mês depois.
NUCLEON: Analisa áudios de voz coletados pelo PRISM.
DISHFIRE: Coleta e armazena milhões de SMS por dia no mundo inteiro, extraindo dados como localização, contatos e cartões.
PREFER: Sistema que classifica automaticamente os dados coletados (logins, fotos, vídeos, etc.).
PINWALE: Banco de dados que armazena vídeos e conteúdos selecionados por até 5 anos.
Em 13 de maio de 2014, de Glenn Greenwald, no livro Sem lugar para se esconder revelou os nomes das empresas chaves na parceria com a NSA no programa de vigilância e espionagem mundial do governo americano.
Entre elas está a Verizon (a segunda maior empresa de telecomunicações do mundo) e a Qualcomm (uma das empresas principais no fornecimento de chipsets e outras tecnologias incluindo processadores para dispositivos móveis) que, segundo esses vazamentos, fabrica e vende no mercado mundial equipamentos com backdoors para os malwares que facilitam a espionagem. Outras empresas reveladas como parceiras da NSA são: Cisco, Oracle, Intel, Qwest, EDS, AT&T, Verizon, Microsoft, IBM.
É quase impossível que alguém possua algum equipamento que não tenha alguma tecnologia de pelo menos uma dessas empresas, que supostamente, estão envolvidas em programas de espionagem.
Chegará um momento em que as pessoas pagarão por privacidade e anonimato, pois hoje fazem de tudo para aparecer. Talvez, toda essa “lua de mel” com a internet e a tecnologia acabe em pesadelo: um tempo em que todos terão um grande receio de acessar a rede, opinar, curtir ou comentar, por medo de serem vigiados, punidos ou cancelados pelo próprio sistema.
Na verdade, esse tempo talvez já tenha começado e estamos caminhando a passos largos para uma grande distopia.
Se alguém poderoso o suficiente quiser, já pode usar tudo o que sabe sobre você de forma direcionada: suas falas, seus gostos, seu deslocamento, seus contatos, seus hábitos.
Estamos, talvez, alimentando com nossos próprios dados o profético Grande Irmão descrito por George Orwell em 1984.
“O Grande Irmão está te observando.”
— George Orwell, 1984